quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Conto - O cavalheiro.

"Era uma sexta-feira chuvosa quando fui obrigada a deixar de ir para o ensaio para cumprir uma rotina de embelezamento. É muito difícil pensar em salão, a escolha do esmalte ou o penteado certo para um casamento, quando se está a 36h (trinta e seis horas) de plantão e o barulho da maca batendo na porta de metal, seguido de gritos pelo seu nome, está entranhado na cabeça, de tal forma que as únicas coisas que se consegue pensar são em prescrições, leitos, o remédio que não tem no hospital e por aí vai.

Depois de um plantão, eu estou cansada o suficiente para não conseguir dormir e a única coisa que faz eu reordenar os meus pensamentos é a dança. Hoje seria um dia muito legal, conseguiria fazer a aula das 18h e das 19:30h, uma espécie de despedida, se eu não tivesse que adentrar em um salão de beleza, fazer as unhas, cabelo e um cara de alegria. Será que eles também fazem a cara de alegria? Nessas horas (e em tantas outras), é muito complicado ser mulher. Se um homem que trabalhou o dia todo, não se exigiria tanto dele, pelo contrário, não faltariam pessoas para serem sensíveis a sua estafa, mas para a mulher é uma obrigação ser linda.

Cumpri o meu dever. Fui ao salão, que alguém tinha agendado para mim, fiz as unhas (com direito a uma massagem nos pés que foi equivalente a quatro horas de sono noturno), maquiagem e o cabelo.  Usei um vestido rosinha que alguém escolheu, mandou para a lavanderia e foi buscar (meu muito obrigado a essa pessoa) e fui, assim mesmo, sem pensar muito.

Tudo transcorreu dentro da mais normalidade. Missa padrão, piadas com os noivos iguais, fotos, vídeos, gente chorando e o sono começou a tomar conta de mim. Comecei a pensar o que ainda estava fazendo ali, se já tinha cumprido a minha missão social daquela noite. Olhei para o lado, peguei minha bolsa, a chave do carro, levantei e quando ia dar tchau pra quem estava ao meu redor, senti um cheiro de perfume bom e ouvi uma voz dizer: “Não vai, a gente ainda não dançou”.

Levantei o olhar na tentativa de dizer que aquela não seria uma boa hora, que eu estava cansada e que precisava ir, mas foi só olhar diretamente para aqueles olhos e abrir a boca para dizer que só dava para ser uma música. Ele sorriu o sorriso mais lindo que já vi, me ofereceu o braço e fomos andando em direção a pista.

No tempo de umas três músicas, eu disse que era médica, que dançava ballet e que estava muito cansada para estar naquela festa. Ele me disse seu nome, Mateus, que era advogado e tinha me olhado a noite toda, na esperança de que virasse olhar e a gente pudesse conversar um pouco. Fiquei envergonha, não tinha olhado nem ao meu redor e quase pedir a chance de conhecer uma pessoa legal, que tinha um cheiro gostoso e dançava sem pisar no meu pé.

Teria trocado conversas ao pé do ouvido por muito tempo. Rápido o sono passou. Depois de saber tão pouco sobre aquele rapaz de sorriso bonito e cheiro bom, a música terminou, as luzes do salão foram ligadas e nós precisamos nos despedir.

Com passos bem lentos, ele foi até o carro comigo e perguntou se poderíamos nos ver novamente. Eu disse que seria muito difícil, pois embarcaria dali à 03 dias para a África, ficaria por um ano trabalhando no projeto “Médicos sem fronteira” em Angola. Na hora que me escutei falar isso, fez sentido todas as viradas de plantão, as horas dedicadas ao trabalho e o ato (a omissão, no caso) de não olhar para o lado. Simplesmente, não estava disposta a conhecer ninguém.

Com um sorriso triste, mas ainda lindo, ele disse: “Que tristeza, merecíamos mais cinco minutos”. Fechou a porta do meu carro e foi embora. Sei que posso achar ele quando voltar, mas se eu não voltar? Ou se ele não estiver mais aqui? Sempre são as escolhas.


Sei que não vou esquecer daquele sorriso. Se amor a primeira vista existe, foi o que eu senti nessa noite.” 

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Nota sobre o desapego.

Faz algum tempo que li um determinado livro sobre medicina indiana. O livro é narrado por um brasileiro que levou sua companheira, com diagnóstico de esclerose múltipla, para fazer um tratamento médico na índia. Detalhes do tratamento a parte (muito interessante), em sua primeira viagem, uma das primeiras coisas que o deixou chocado foi em como os taxistas indianos não tinham aquela exclusividade padrão que se imagina de um taxista. Ao questionar o motivo do taxista parar para outras pessoas quando ele já estava dentro do carro, ele respondeu que não havia motivo para levar uma única pessoa se outras pessoas querem ir para o mesmo lugar e há espaço no carro.  Faz sentido, mas é difícil trazer essa filosofia para o nosso (pensando enquanto brasileiros) dia-a-dia.

Problemas de segurança a parte, acredito que a maior dificuldade de dividir (seja espaço, objetos, atenção...) seja o apego que temos com o que é “nosso”. Lógico, ainda que criação doméstica seja para dividir as coisas com o seu irmão (quem tem), de uma forma macro, somos criados estudar, trabalhar e ter as nossas coisas, o nosso espaço. Nesse sistema de “ter” e “comprar” acaba indo no bolo uma série de coisa, entre elas, não dividir o taxi, não dar carona, comprar mais do que precisa, viver de aparências e etc.

Vão também os sentimentos. Acaba que sufocamos ou somos sufocados. Sofremos ou fazemos alguém sofrer. Tudo isso para ter alguém ou a companhia de alguém que quer ter a companhia de outra pessoa. É um ciclo vicioso de apego que só gera frustração. As pessoas estão parcialmente de felizes: de um lado tem alguém que se contenta com pouco e de outro tem alguém não se entrega por inteiro, só dá uma parte pequena de si. Nesses pequenos reforços positivos, relacionamentos se sustentam por um prazo muito maior do que deveriam.

Desapegar significa, ao mesmo tempo, “deixar ir” e estar preparado para o “não voltar”. O legal é que quando volta, a mensagem que fica é que se esta diante de uma pessoa que busca um relacionamento que não está pautado em posse superficial, mas em escolhas feitas com liberdade. E liberdade é algo fundamental.

Não é toa que dizem que para saber sobre os sentimentos de alguém, você deve deixar a pessoa ir. Se voltar, é de livre vontade que a pessoa quer a sua companhia. Se não voltar, vida que segue. Nem tudo é perda, algumas coisas são livramento.